sábado, 29 de agosto de 2009

Manifesto contra o obrigado

Não somos obrigados a escrever este manifesto, assim como o leitor não é obrigado a nos dedicar parte de seu precioso tempo, muito menos a concordar com nossos argumentos. Se essas palavras foram suficientes para afastar sua curiosidade, limitamo-nos com sua atenção inicial e agradecemos: MUITO SATISFEITOS!
Se, entretanto, quiser entender o motivo pelo qual nosso agradecimento se encerra com a expressão “MUITO SATISFEITOS”, em vez do tradicional “MUITO OBRIGADO”, preste atenção no que lerá a seguir e, caso concorde com nosso manifesto, participe de nossa corrente para mudança cultural de expressões desnecessárias. O que você ganha com isso? Do ponto de vista materialista, absolutamente nada. Do ponto de vista existencial e humanístico, passará a prestar mais atenção nas questões cotidianas que nos são empurradas goela abaixo, pela evolução social e consequente assimilação de padrões de comportamento, de forma automática e irracional.
Você já parou para contar quantas vezes, no seu dia, fala a palavra “obrigado”? (faça este teste e ficará surpreso com o automatismo da linguagem nas relações humanas). E, por acaso, sabe qual é o significado do termo?
A palavra “obrigado” resume a expressão “sinto-me obrigado a retribuir-lhe o que me fez”, motivo pelo qual ocorre a variação gramatical de gênero, ou seja, as mulheres dizem “obrigada”, no feminino, bem como as respostas de seu interlocutor são “de nada” ou “por nada” ou, ainda, “não há de quê”, ou seja, “você não é obrigado de nada (ou por nada)” ou “não há de que se sentir obrigado”.
É por esta razão também que se condena a resposta “obrigado você” a quem nos agradece, pois seria o mesmo que ouvirmos a frase “sinto-me obrigado a retribuir o que me fez” e respondêssemos “quem se sente obrigado é você”.
Sem a pretensão de realizar uma pesquisa antropológica e psicológica sobre as relações de cortesia e cordialidade entre os seres humanos, é fácil admitir, para qualquer observador, que suas demonstrações são necessárias ao bom convívio social. Quem não agradece aquele que proporciona alguma utilidade (ou satisfaz sua necessidade) é tido, por seus pares, como uma pessoa mal educada, ríspida e que não merece consideração pelos demais (ainda que, após o “obrigado”, venha a resposta “de nada”). Mas, sendo racional, se eu já sei que a pessoa me responderá com o seu “de nada”, por que falar “obrigado”?
Não pretendemos, por outro lado, propor a eliminação de traços de comportamento gentil com aqueles que nos cercam, mas temos que considerar que a linguagem não verbal é muito mais efetiva do que a linguagem verbal, o que significa que, independente do significado da palavra “obrigado”, o que importa é mostrar à outra pessoa que estamos tão agradecidos pelo que ela nos fez, ao ponto de nos sentirmos na obrigação de retribuir-lhe de alguma maneira. A nossa postura corporal, o nosso tom (e timbre) de voz, os nossos gestos, enfim, o contexto da comunicação é muito mais efetivo, para relação cortês entre as pessoas, do que a palavra que se utiliza. Prova disso, para a nossa análise, ocorre quando falamos “obrigado” ou “muito obrigado” de forma contrariada, apenas para demonstrar à pessoa que estamos descontentes (ou insatisfeitos) com o que ela nos fez. Imagine a cena da mãe que briga com o filho por ter sujado a casa toda, dizendo “Bonito, hein, muito obrigado...”, ou da namorada que, após o atraso de 2 horas do namorado, recebe-o com as palavras “Muito obrigado por me fazer esperar”. Ainda que seja tentador imaginar que, nos casos citados, o orador esteja querendo também dizer que se sente obrigado a retribuir o mesmo que recebeu, uma análise mais cuidadosa leva, indubitavelmente, à conclusão de que se trata da utilização irônica da expressão, pois o “obrigado” se utiliza, consensualmente, quando o que recebemos é bom; ninguém diz, por exemplo, obrigado àquele que lhe bateu, roubou ou estuprou (a idéia do “olho por olho, dente por dente”, presente em qualquer formação social, desde as mais primitivas comunidades, ainda que não seja praticada frequentemente, não exige a manifestação por meio da palavra “obrigado”; nestes casos, a vingança privada é simplesmente adotada, sem a necessidade de linguagem oral). Em outras palavras, quem sofre um mal e se sente obrigado a retribuir o mal a quem lhe causou, adota as medidas que entende como mais adequadas, conforme seu juízo de valor, mas não se antecipa dizendo ao outro: “obrigado”.
Aliás, o “obrigado”’, quando utilizado nas nossas relações cotidianas, na maioria das vezes, reveste-se de uma abstenção (e não de uma ação). Quem fala “obrigado”, via de regra, não sabe o que está falando, mas é como se a sua gentileza linguística isentasse-o de tomar qualquer outra atitude. Fala-se “obrigado” para mostrar que a relação travada entre as duas pessoas resultou em algo positivo, mas se encerra naquele momento (e o outro retribui a gentileza, dizendo-lhe “de nada”). Quando, realmente, surge a obrigação de retribuir, a ação é automática, sem a necessidade de manifestação por meio de palavras, mas pela própria atitude. Se alguém, por exemplo, é convidado a almoçar na casa de um amigo e, logo após a refeição, ajuda a retirar os pratos e lavar a louça, sua decisão constitui um agradecimento muito mais efetivo do que apenas dizer “obrigado pelo almoço, estava delicioso”; ou seja, aquele que se sente mesmo obrigado trata, de alguma forma, de recompensar o anfitrião, seja ajudando com a limpeza do almoço, seja convidando-o para outra refeição na sua própria casa. Quando as palavras são seguidas de tais atitudes, é até compreensível a utilização do “obrigado”, o que não se pode dizer do “obrigado” automatizado que tanto utilizamos.
Da mesma forma, não vemos motivo para falar “obrigado”, diante de gentilezas triviais, como “bom dia”, “boa sorte”, “boa viagem”, “seja bem vindo”, entre tantas outras. O “obrigado”, nestas situações, serve, tão somente, para refletir a satisfação da pessoa que recebeu acolhida e, consequentemente, não mostrar hostilidade a alguém que está sendo gentil.
Pior ainda ocorre quando o “obrigado” é utilizado em relações que já se estabeleceram com outro tipo de retribuição. Não sou obrigado, por exemplo, a retribuir nada que o garçom tenha me servido durante o tempo em que estive no restaurante (minha obrigação é pagar pelo serviço; a dele, de prestar o serviço que estou pagando). Não temos a intenção, obviamente, de propor comportamentos grosseiros, do tipo “se estou pagando, não preciso ser gentil”, mas vemos a necessidade de buscar outra palavra que expresse, de forma mais adequada, o sentimento gerado nas relações sociais, substituindo-se a palavra “obrigado”; aliás, o mais importante, no contexto exemplificado, é que seja feito o pagamento devido pelo consumo no restaurante, de nada adiantando o consumidor abrir um enorme sorriso, apertar efusivamente a mão do garçom e dizer-lhe “muito obrigado pela refeição”.
Outro exemplo interessante pode ser mencionado naquelas situações em que alguém nos oferece algo que não queremos. Qual é a obrigação gerada a partir desta recusa, que deva ser manifestada pelo consagrado “não, obrigado”? Se a pessoa não quer o que foi oferecido, ela está se sentindo obrigada do quê? Puro costume linguístico, mais uma vez.
Ou, então, quando recebemos os cumprimentos, congratulações e/ou aplausos de alguém (ou uma platéia) que nos viu em determinada apresentação que lhe agradou (uma aula, uma peça teatral, um show musical etc). Se a reação alheia é tão somente resultado do trabalho que realizamos (cujo esforço só nós sabemos dimensionar verdadeiramente), por qual motivo o homenageado deve se sentir obrigado? E obrigado a quê? Trata-se, muito mais, de um sentimento de satisfação pelo sucesso alcançado, que nada tem a ver com a palavra “obrigado” (ao menos em suas raízes).
Por todos estes exemplos, é que decidimos buscar outro termo que possa substituir a palavra “obrigado”, para, ao mesmo tempo, expressar corretamente o sentimento existente e manter o nível de harmonia e amabilidade das relações amistosas.
E esta palavra é “SATISFEITO”. Por que “SATISFEITO”? Porque, em uma única palavra, resumimos duas expressões: “Eu me sinto satisfeito” e “Você satisfez o que eu queria /precisava / esperava”. Apesar de parecerem a mesma coisa, não são: no primeiro plano, encontra-se a satisfação interior, que não precisa ter, necessariamente, relação com a outra pessoa. Nas relações de consumo, por exemplo, existem vendedores que não se preocupam em cativar o cliente; posso não estar satisfeito com a sua forma de atendimento, mas talvez internamente me encontre satisfeito, pois as minhas necessidades foram atendidas. Por que falar “obrigado” ao caixa da padaria, que recebe o dinheiro decorrente de meu consumo, com aquela cara de poucos amigos? Estou me obrigando a quê, se a relação foi puramente comercial? Melhor dizer “satisfeito”, pois a comida adquirida naquele estabelecimento foi suficiente para acabar com minha fome.
Em segundo plano, o foco da satisfação está no interlocutor. Ao ter meu carro trazido pelo manobrista do estacionamento, não me sinto obrigado a nada, mas ele satisfez o que eu precisava e, por isso, melhor dizer “satisfeito” do que “obrigado”. Da mesma maneira, quando alguém me faz uma gentileza, de pegar um objeto que deixei cair no chão.
O exemplo da apresentação em público, que seja motivo de homenagem, pode ser visto tanto como satisfação interna (como reconhecimento pessoal do sucesso obtido), quanto satisfação externa (como agradecimento pela manifestação espontânea das pessoas). Mais uma vez aqui, o “satisfeito” apresenta-se muito mais adequado do que o “obrigado”.
Apresentamos sete diferenças entre o “obrigado” e o “satisfeito”:
1. O “obrigado” pressupõe duas (ou mais) pessoas: uma que se obriga (voluntariamente) e outra(s) que fez(izeram) algo presumivelmente bom; o “satisfeito” independe do interlocutor, pois pode expressar tanto a satisfação com o que foi feito pelo outro, quanto a satisfação das necessidades pessoais;
2. O “obrigado” gera um dever: de retribuir, e um direito: de cobrar a retribuição (a relação de dever / direito tem, inclusive, implicações jurídicas, já que o Código Civil brasileiro estabelece, em Livro próprio, o Direito das obrigações); o “satisfeito” não gera qualquer relação além da que resultou em sua manifestação;
3. A resposta do “obrigado” representa uma contrariedade, um choque de interesses: de um lado, um diz “eu me sinto obrigado a retribuir o que me fez” e, de outro, a pessoa repulsa: “você não está obrigado de nada”; no caso do “satisfeito”, aquele que ouve pode compartilhar do sentimento de satisfação, sem desmerecer o que seu interlocutor sentiu; basta dizer a palavra “MERECIDO” (o equivalente ao “de nada”), que significa “Parabéns, você merece essa satisfação” ou, então, “Você está satisfeito porque eu fiz o que devia ser feito; portanto, o resultado é merecido”;
4. O “obrigado” pressupõe uma relação de subserviência, pois aquele que agradece coloca-se numa posição inferior ao outro (ainda que minimamente sentida, a relação social estabelecida transfere uma certa autoridade a quem recebe o agradecimento, que pode, até mesmo, recusá-lo, dizendo “de nada”); o “satisfeito”, ao contrário, mantém a igualdade de condições na relação, evidenciando a plenitude daquele que agradece, que, ao mesmo tempo, pode demonstrar o reconhecimento pelo trabalho do outro e/ou manifestar a sua satisfação pessoal, independente se a relação travada foi ou não gratificante (lembre-se do caixa da padaria carrancudo);
5. O “obrigado”, originando-se dos pactos sociais travados entre as pessoas de uma mesma comunidade (que se viam com frequência e, portanto, necessitavam formar bases de solidariedade para relações duradouras) pressupõe uma continuidade da relação (embora o padrão de comportamento atual não seja este, o correto seria cobrarmos, oportunamente, todos os “obrigados” que recebemos durante nosso dia); o “satisfeito” encerra-se na relação travada, não deixando margem para cobranças futuras (até porque, hoje, a maioria das nossas relações cotidianas são efêmeras);
6. O “obrigado”, de tão usual e automático, não é nem mesmo percebido em nossos diálogos, passando a ser um mero indicativo de educação; o “satisfeito” muda a relação humana, pois chama a atenção daqueles a quem se dirige, enaltecendo o verdadeiro sentimento existente naquele momento;
7. O “obrigado” é utilizado, indistintamente, em todas as situações em que se pretende mostrar gratidão ou reconhecimento de uma gentileza; o “satisfeito” é seletivo e sincero, usado apenas quando ocorreu a satisfação (interna e/ou externa). Se alguém me diz “bom dia”, por exemplo, não há o que se falar “obrigado” e nem mesmo “satisfeito”; a melhor demonstração de cordialidade é retribuir a gentileza, dizendo “bom dia” / “bom dia pra você também” / “igualmente”.

Enfim, ficamos satisfeitos que tenha chegado ao final da leitura deste manifesto, pois te obrigamos a, pelo menos, refletir. Temos usado a palavra “satisfeito”, no lugar de “obrigado” e o resultado tem sido muito interessante. Pense nisso! Mude!

2 comentários:

  1. Off-topic: Por que não usar a expressão "agradecido"? Ou "muito grato"? Até mesmo "gratidão"? Se o objetivo é mostrar o quanto você está satisfeito ao mesmo tempo revelando estar agradecido pelo que lhe foi proporcionado, a expressão "muito satisfeito" não carregaria consigo, somente, essa intenção de revelar a gratidão, apenas a de satisfação, desconsiderando (pelo menos parcialmente) os (possíveis) sacrifícios de quem fez o favor em detrimento de sua satisfação ou não.

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